O papel das organizações de Saúde nas práticas de ESG
Pilares relacionados a Environmental, Social and Governance, hoje, contribuem para preservar a estratégia de qualquer negócio
As instituições de Saúde, por excelência, são organizações sociais. Mas, além de cumprir seu evidente papel social, vêm se adequando a outras questões previstas pela ESG (acrônimo para Environmental, Social and Governance, ou na tradução, Governança Ambiental, Social e Corporativa). Estes são pilares que, hoje, servem de base para a estratégia de qualquer negócio por várias razões. Uma delas é a urgência em combater o aquecimento global e preservar a vida no planeta, bem como em respeitar os princípios em torno da diversidade. Sem priorizar estes pilares, muitos negócios deverão ser inviáveis num futuro próximo. Os de Saúde, inclusive.
Com o intuito de entender melhor em que ponto o setor está nas práticas de ESG, conversamos com Vital Ribeiro, presidente do conselho do projeto Hospitais Saudáveis e arquiteto da divisão de meio ambiente do centro de Vigilância Sanitária de São Paulo. A seguir, confira sua inovadora visão a respeito deste tema.
- Qual é o papel das organizações de Saúde nas práticas de ESG?
Vital: No setor privado, fica muito evidente a necessidade de ter práticas de ESG. Diante do processo de financeirização da atividade de Saúde, com o aporte de grandes fundos que criam negócios de longo prazo, é preciso atender, também, a expectativa dos acionistas, que começam a aplicar ao negócio da Saúde o mesmo padrão que eles aplicam a outros negócios. Por exemplo, controle de corrupção. Antes, não se falava sobre isso no setor de Saúde, mas às vezes estourava um escândalo e isso era tratado como algo pontual. Mas, hoje, existem políticas específicas, porque o acionista sabe que vai ter problema se a empresa em que ele investiu se envolver em um escândalo.
- Há diferenças entre o setor da Saúde e os outros setores frente aos indicadores de ESG?
Vital: Sim, porque ele se diferencia dos outros. Uma coisa é você fabricar barrinha de cereal, por exemplo, e ela estar na prateleira de supermercado. A fabricante tem algum grau de necessidade de se prevenir contra riscos de imagem. Mas, um hospital tem muita exposição. O setor é extremamente sensível, porque quem usufrui do serviço de saúde precisa ter um nível de confiança cego no fornecedor, mais do que em qualquer outra atividade. Se você compra comida no mercado ou um carro na loja, está muito mais bem informado sobre o que está consumindo do que quando entra no hospital e vai ser submetido a procedimentos sobre os quais não entende e talvez nem esteja acordado para ver. E você entrega sua vida nisso. Com relação aos indicadores utilizados, eles são uma excelente maneira para dar concretude à pauta e podem variar bastante de setor para setor.
- Com base na sua experiência, você diria que os hospitais estão mais conscientes da necessidade urgente de olhar para a questão da sustentabilidade?
Vital: No setor de Saúde, a gente tem uma ênfase grande em clima. É uma área que está se mobilizando rapidamente. Outros setores ainda deixam a desejar, mas a Saúde se ligou para isso por uma convergência de fatores. O hospital público, por exemplo, mais do que qualquer outro, está ligado a uma questão de saúde público-ambiental. As grandes epidemias, doenças transmitidas por vetores, desastres ambientais, tudo isso afeta fortemente o SUS. A covid-19 provou isso. O setor de Saúde passou por um processo de trauma e amadurecimento muito acelerado nos últimos dois anos. Então, tenho visto uma procura grande do nosso trabalho em clima e energia, que são fatores que têm características estratégicas para as operadoras de Saúde. Ainda vai demorar alguns anos para a gente saber o impacto da pandemia. Para as práticas de gestão corporativas, acho que muitos “bodes foram colocados na sala”, deixando todo mundo com mais consciência, mais sensível e preparado. A capacidade de resposta mais rápida foi posta à prova. Mas a urgência é uma questão ainda subjetiva. Quando eu falo pra esse público que é preciso aprender a fazer uma Saúde de baixo carbono, reduzir as emissões pela metade até 2030, parece que as pessoas ficam anestesiadas. É um misto de “eu nem sei o que vou estar fazendo em 2030” com preocupação real, porque, para qualquer movimentação no plano de ação e estratégico, este é um prazo bem apertado.
- O que pode estar sendo deixado de lado?
Vital: Um tema que eu acho muito importante discutir são as implicações sócio-ambientais em função da cadeia produtiva. Um hospital até pode dizer que garanta as melhores práticas, que tem cotas, investimento social, paga creche para os filhos dos funcionários, etc. Mas o terceirizado, que é quase metade da instituição, pode não ter nada disso. E mesmo que a organização estenda os critérios para seus contratados de primeiro grau, ela tem que começar a olhar além. Por exemplo, para a condição do trabalhador que está fazendo a luva, um dos itens mais utilizados no hospital, lá na Malásia, que é o maior produtor mundial de látex. Lá, o trabalho escravo na indústria de luva de latex é uma realidade muito forte. É importante estender este olhar para as práticas de governança no sentido de não contribuir para a exploração de pessoas.
- Quais são as maiores dificuldades das instituições de Saúde em se adequar aos critérios da ESG?
Vital: Muita gente atribui essas dificuldades à falta de recursos. É até um clichê. Mas não corresponde à realidade, porque a ideia de que a sustentabilidade tem um preço alto contraria até o próprio conceito de sustentabilidade. O que tem de ser feito, tem de ser feito. A gente vai fazer economia ou salvar o planeta? Boa parte das soluções ambientais que a gente coloca são rentáveis e têm saldo positivo econômico por conta da eficiência gerada. Quando você toma decisões sem levar em conta de que as coisas estão em movimento, adia a sua capacidade de estar preparado para um outro patamar. Isso acontece muito no Brasil e explica, grande parte, o dinamismo da economia europeia. Mas um caso clássico deste tipo de efeito é na Califórnia, onde as exigências ambientais são fortíssimas e a economia segue firme. Este continua sendo o estado mais forte, porque quanto mais restrições, mais as empresas inovam, mais são competitivas. Então, eu diria que outra grande dificuldade é a falta de ambientes regulatórios mais exigentes, que normalmente é mais sustentável. O ESG é uma resposta das organizações a uma demanda civilizatória, de redução da estupidez no sentido do desperdício, da destruição gratuita e do descaso pelo luxo. O luxo, para muitas pessoas, é um apartamento cheio de segurança, mas o luxo, na verdade, é um ambiente natural onde convivem centenas de espécies. Você não consegue comprar isso, nem reproduzir. Isso simplesmente existe.
- A redução do uso de papel ainda é um desafio para os hospitais?
Vital: Em 35 anos que estou atuando nessa área, já assisti a vários exemplos de evolução tecnológica que revolucionaram a Saúde. Em alguns casos, chegaram a extinguir problemas. Por exemplo, a gente tinha a questão dos químicos na radiologia, porque precisava revelar as chapas de raio-X. Hoje em dia, é tudo digital. Os documentos são uma pequena parte de toda uma história. Você cria processos em ambiente digital e insere essa tecnologia em todas as etapas, cada vez mais. Eu conheci muitos hospitais, fazia projetos como arquiteto, simultaneamente com o trabalho de meio ambiente. A gente não só fazia projetos como ia em campo, visitar os grandes arquivos mortos, os grandes depósitos de papel, de prontuário, de documentação de paciente. As pessoas ficavam doentes com os fungos da papelada velha. Antes, existiam leis que diziam que você tinha de guardar o papel por 5 anos, por 20 anos, conforme o documento. O hardware disso já está disponível há bastante tempo. A questão da digitalização dos processos foi resolvendo à medida que fomos internalizando. A gente já não tem mais assinatura, mas tem uma senha, um reconhecimento de face, outros recursos de criptografia de segurança, etc. Também há um computador em cada quarto de paciente porque a enfermeira não consegue trabalhar sem o computador ao lado, ela tem que dar o comprimido e ir lá e clicar para atualizar o prontuário. Então, os hospitais estão saindo de uma situação de muita papelada, pois é uma atividade extremamente burocratizada, para este mundo. O ganho é absurdo. Agora, acho que a maioria dos hospitais têm algum grau de digitalização. É claro, ainda tem o pessoal que se trai, mesmo com a digitalização, você pega gente pedindo um documento em três vias. Mas é fato que, na digitalização, a gente tem inúmeros cases positivos. A gente não usa mais papel, pasta, hoje existe a nuvem. Estamos naturalizando essa inovação.
